domingo, 17 de novembro de 2013

Revolta do Vintém, o passe livre do século 19

Aventuras na História

Revolta do Vintém, o passe livre do século 19

Como foi a Revolta do Vintém, os protestos da população carioca contra o aumento do preço dos bondes que chacoalhou a monarquia

Texto Marcus Lopes | Ilustrações Pedro Hamdan | 02/08/2013 16h58
Não é de hoje que aumentos das tarifas de transporte público tornam-se estopim para manifestações e revoltas populares no Brasil. Em 1880, a cobrança de uma taxa na passagem de bonde transformou a capital do Império, o Rio de Janeiro, em praça de guerra - e contribuiu para desestabilizar a monarquia brasileira, que cairia nove anos depois. O movimento, considerado o primeiro grande distúrbio urbano no país pela melhoria dos serviços públicos, ficou conhecido como Revolta do Vintém. Pelo menos três pessoas morreram e centenas ficaram feridas durante os dias em que a confusão tomou conta das ruas do Rio. Um vintém equivale a menos de 20 centavos em dinheiro de hoje, mas o cálculo é uma aproximação.
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A revolta começou em 13 de dezembro de 1879, quando a Coroa anunciou um imposto de 20 réis - equivalente a um vintém - sobre as tarifas de bondes puxados a burro, um dos principais meios de transporte da população na época. O tributo, chamado de "imposto do vintém" seria cobrado diretamente nas passagens a partir de 1º de janeiro de 1880 e foi instituído pelo governo como forma de diminuir o déficit público. Na prática, era um aumento no preço da passagem, e considerável: da ordem de 20%.
Não tardou para que a medida ganhasse as páginas dos jornais e a reação negativa da população. A principal crítica era que o novo imposto atingiria da mesma maneira os ricos e os pobres, já que o bonde era praticamente o único meio de deslocar-se por grandes distâncias na cidade. A primeira manifestação ocorreu no dia 28 de dezembro. Foi um ato pacífico que reuniu 5 mil pessoas (a população do Rio era de 1,1 milhão de habitantes) no Campo de São Cristóvão para ouvir o discurso do abolicionista e republicano José Lopes Trovão. Dono do jornal Gazeta da Noite, Trovão tornou-se um dos principais líderes do movimento. Dali, a multidão seguiu em passeata até o Palácio da Boa Vista, onde estava o imperador dom Pedro II.

Um mensageiro da Coroa trouxe a informação de que o monarca, mesmo a contragosto, aceitaria receber uma comissão de manifestantes para discutir a taxa, mas o recado foi ignorado. Os republicanos procuravam tirar o máximo de proveito político da situação. Mesmo assim, o dia terminou sem incidentes e a multidão se dispersou em paz.

Nos dias seguintes, a imprensa conservadora criticou o fato de os manifestantes não terem aberto o diálogo com dom Pedro II. No dia em que o imposto começaria a ser cobrado, uma grande manifestação foi organizada no Largo do Paço. Trovão fez um breve discurso pedindo que a população resistisse pacificamente à cobrança do imposto, mas não foi ouvido. Grupos de manifestantes começaram a seguir pelas ruas da Carioca, Uruguaiana, Visconde do Rio Branco e Largo São Francisco, ponto de partida e chegada da maioria das linhas.

Ali, começou o confronto. Para protestar contra a cobrança do vintém adicional, os manifestantes tomavam os bondes, espancavam os condutores, esfaqueavam os animais utilizados como tração, despedaçavam os carros, retiravam os trilhos e, com eles, arrancavam as calçadas. Os focos de tumulto pipocaram em vários pontos do centro do Rio de Janeiro, com barricadas e depredação. Manifestantes entraram em conflito com a polícia, que respondeu à bala, matando três pessoas.

A confusão continuou no dia seguinte. Trilhos de bonde continuaram a ser arrancados das ruas e as chaves dos veículos, roubadas. Das janelas, garrafas e pedras eram atiradas em direção aos veículos. No decorrer do dia, várias pessoas foram presas e a polícia solicitou reforço ao Exército, que passou a controlar a situação reprimindo os focos com golpes de cassetete - ou tiros. No dia 3 de janeiro, a situação estava um pouco mais calma, resumindo-se a alguns focos de tumulto na Rua do Ouvidor, rapidamente sufocados pelas tropas do Exército.A situação só foi totalmente controlada no final do dia 4, quando alguns manifestantes tentaram impedir a circulação de bondes na Rua Sete de Setembro, sem sucesso. Por causa da pressão popular, o imposto acabou sendo revogado em setembro de 1880. Mas os danos foram além de manifestantes mortos e dos bondes destruídos. Diante do desgaste político, todos os integrantes do Ministério da Fazenda foram substituí-dos por ordem do imperador.

Não se sabe ao certo o número de feridos durante as manifestações e tampouco se os mortos foram apenas os três registrados no primeiro dia do confronto. O que se sabe é que o Rio de Janeiro viveu dias de grande tumulto, com saques de lojas, roubos e população em pânico. O episódio foi resgatado na minissérie Chiquinha Gonzaga, exibida pela Rede Globo em 1999 e que retratou a vida da compositora do século 19. Na trama, a protagonista, na pele da atriz Regina Duarte, se vê em meios às manifestações contra a taxa.

"A Revolta do Vintém representou uma mudança na forma de atuação política, até então concebida apenas como a atividade institucional e parlamentar, com um sistema eleitoral marcado pelo voto indireto e censitário", afirma o historiador Claudio H. M. Batalha, do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do Dicionário do Movimento Operário: Rio de Janeiro do Século XIX aos anos 1920. "A política deixou de ser restrita ao Parlamento e passou a ser feita também nas ruas, por meio de panfletos, comícios e manifestações." Batalha lembra que a revolta teria efeitos de longo prazo, ao ampliar as campanhas abolicionista e republicana com gente na rua.

É muito difícil - tirando o foco de que a razão que deu início ao protesto foi o aumento no preço do transporte urbano - traçar paralelos entre o que aconteceu na década final do império e as manifestações que começaram a ocupar as ruas das principais cidades brasileiras em junho.
"Ambos tiveram como estopim o aumento do custo das passagens do transporte público, depararam-se com reações violentas da polícia e a questão inicial dos transportes apontou para outros problemas enfrentados pela população", afirma Batalha. "Mas na Revolta do Vintém as lideranças políticas tiveram papel essencial, enquanto que o processo recente é muito mais horizontalizado", diz o historiador. Para Batalha, assim como a Revolta do Vintém mudou a percepção da política, dos gabinetes para as ruas, no final do império, muita gente acredita que algo similar ocorrerá a médio prazo no processo que o país vivenciou a partir do meio do ano. Mas isso é pauta para as futuras edições de AVENTURAS NA HISTÓRIA.

Tostões da discórdia


Aumentos de tarifa têm potencial explosivo

A briga por redução de tarifas sempre esteve na pauta de movimentos estudantis e populares do Brasil. Em maio de 1956, a União Nacional dos Estudantes (UNE) promoveu manifestações nas ruas do Rio de Janeiro pela redução das tarifas de bonde. O confronto mais grave ocorreu no dia 31 de maio, quando houve uma briga entre estudantes e polícia em frente ao prédio da UNE, na praia do Flamengo.

Após o conflito, que rendeu inúmeros discursos na Câmara dos Deputados, o presidente Juscelino Kubitschek resolveu intervir pessoalmente. Chamou o presidente da UNE, Carlos Veloso de Oliveira, para negociar. Bem ao seu estilo, JK pediu para o líder sentar em sua mesa, no Catete, para que sentisse o peso da responsabilidade e a gravidade da situação. Por fim, o presidente, conhecido pelo seu instinto afiado, lançou um convite: "Carlos, me ajude a salvar o regime". O movimento acabou ali mesmo.
Dois anos depois, em 1958, foi a vez de São Paulo. Quatro manifestantes morreram e dezenas ficaram feridos, no final de novembro, após os protestos contra o aumento das passagens de ônibus e bonde. O reajuste foi concedido na calada da noite e os paulistanos só ficaram sabendo do novo preço na manhã do dia 30, ao ver o valor majorado afixado no para-brisa dos veículos.

Durante a manhã, as manifestações foram pacíficas e até bem-humoradas. Um grupo de estudantes do Mackenzie jogou xadrez sobre o trilho de uma linha de bonde para impedir a passagem do veículo. Ao cair da tarde, porém, diversos piquetes foram realizados no centro da cidade. Ônibus foram depredados, vidraças, quebradas e o comércio baixou as portas. Fiscais da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) orientavam os motoristas a recolher bondes e ônibus. Para conter a multidão impaciente pela falta de transporte e os manifestantes que atiravam paus e pedras nos veículos, integrantes da Força Pública começaram a atirar para o alto.

"As cidades estavam crescendo depressa naquela época, inclusive com a chegada de muitos migrantes, mas não ofereciam infraestrutura urbana adequada", afirma o historiador Marco Antonio Villa, do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), para explicar as manifestações no Rio e em São Paulo. Pelo visto, a infraestrutura continua ruim.

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LIVRO


As Barbas do Imperador, Lilia Moritz Schwarcz, Companhia das Letras, 1998
Fonte: guiadoestudante.abril.com.br

Graf Spee, o navio fantasma da marinha de Hitler

O Graf Spee navegou por dois oceanos antes de encontrar seu fim no Rio da Prata

10/05/2013 17h41
Texto José Francisco Botelho, de Porto Alegre | Reportagem Ricardo Lacerda e José Francisco Botelho
A 7 km da costa do Uruguai, no Rio da Prata, jaz o esqueleto do encouraçado Graf Spee - um dos orgulhos da marinha de Hitler, afundado não por torpedos inimigos, mas por ordem de seu capitão. Antes de encontrar seu destino nas profundezas, a embarcação protagonizou a última batalha naval à moda antiga da história: um duelo entre navios, baseado na habilidade e astúcia de seus comandantes, sem o uso de força aérea, submarinos ou radares. Isso aconteceu nos últimos meses de 1939. A Batalha do Rio da Prata foi o único combate da Segunda Guerra na América do Sul. A odisseia do Graf Spee encerrou uma era na história das guerras marítimas - meses mais tarde, novas tecnologias revolucionariam as batalhas navais, pondo fim aos duelos entre marujos.

O protagonista dessa história era um sujeito que parece saído das páginas de um romance de aventuras: o capitão Hans Langsdorff. Ele conduziu o Graf Spee em uma jornada secreta por dois oceanos. Descrito até por seus inimigos como um cavalheiro, era bem diferente da ideia que se tem de um oficial nazista: em vez de trucidar prisioneiros, preferia lhes oferecer charutos, bebidas e banhos de sol. Antes de afundar um navio, Langsdorff preferia apertar a mão do capitão adversário - e pedir desculpas, com a mais extrema e meticulosa cortesia. Seu navio foi ao mar dias antes do início da Segunda Guerra. Em 20 de agosto, o Graf Spee partiu de Wilhelmshaven, na Alemanha, com 1,2 mil homens, encarregado de uma missão secreta. O objetivo era estrangular as linhas de comércio da Inglaterra no Atlântico Sul. Para isso, devia afundar navios mercantes nos mares do Brasil, Uruguai e Argentina -evitando entrar em conflito com armadas inimigas. Ou seja: devia agir como um navio fantasma, aparecendo do nada e sumindo com idêntica rapidez - para ressurgir a várias milhas de distância.


 Foto: Wikimedia Commons

O Graf Spee foi considerado o navio ideal para a tarefa. Segundo a propaganda alemã, era "mais forte que o mais veloz, mais veloz que o mais forte". O Bismarck, maior navio da armada de Hitler, tinha 250 m de comprimento. Com 185 m, o Graf Spee era o mais avançado e bem-equipado dos "encouraçados de bolso" (o apelido era referência a seu tamanho e agilidade). "Um navio assim podia alcançar uma velocidade de 28 nós (55 km/h), enquanto outros encouraçados não passavam dos 23 nós", escreveu o historiador uruguaio Federico Leicht em Graf Spee: de Wilhelmshaven al Río de la Plata (sem tradução). "Os encouraçados de bolso foram os primeiros a usar diesel como combustível e navegavam mais de 8 mil milhas marítimas sem abastecer - três vezes mais do que um encouraçado comum."

O maior trunfo, porém, eram as táticas de pirataria de seu capitão. Carregado com latas de tinta, para pintar e repintar o casco, o navio trocava de cor ou de nome - em alto-mar. As torres com canhões eram cobertas por lonas - e Langsdorff mandou instalar, nos mastros, sinalizadores utilizados por navios mercantes. Isso permitia que o Graf Spee se aproximasse dos inimigos quase incógnito - mostrando as garras quando a armadilha já estava fechada.

Nas sombras, o navio fantasma alemão navegou do mar do Norte ao sul do Atlântico - até fazer sua primeira vítima um mês após o início da viagem, a pouco mais de 50 milhas do litoral de Pernambuco. Em 31 de setembro, o navio brasileiro Itatinga encontrou botes lotados de marinheiros ingleses - tripulantes do Clement, que viajava entre Nova York e Rio de Janeiro e fora afundado na véspera pelos alemães. Sem desfraldar a bandeira nazista, pintado de verde-escuro, ele se passara por navio mercante até o último segundo. Durante os três meses seguintes, sob camuflagens variadas, voltaria a aparecer e sumir diversas vezes no sul do Atlântico: afundou mais oito barcos mercantes sem matar um único inimigo.

Ao serem resgatados, os ingleses relataram o método cavalheiresco utilizado por Langsdorff. Com seus canhões apontados para o Clement, o capitão enviou um bote para trazer o comandante inglês a bordo do Graf Spee. O britânico foi recebido com um caloroso aperto de mãos. "Peço que me desculpe", disse-lhe Langsdorff, em inglês impecável. "Sinto muito, realmente, mas vou ter de afundar o seu navio".
 Nascido em 1894, em Düsseldorf, Langsdorff havia servido como tenente na armada imperial do kaiser Guilherme II. Na Primeira Guerra, foi condecorado com a Cruz de Ferro. "De todas as forças armadas alemãs, a marinha era a mais tradicional e possuía, em enormes quantidades, oficiais que não eram ligados ao nazismo. Langsdorff não era filiado ao partido", diz o historiador militar Carlos Roberto Daróz, da Universidade do Sul de Santa Catarina. A bordo do Graf Spee, os prisioneiros ficavam soltos - desde que jurassem não tentar escapar nem sabotar os equipamentos. E costumavam ser desembarcados em segurança em algum porto neutro.



Ilustração: Marcos Rufino

Entre setembro e dezembro de 1939, o Alto Comando britânico empreendeu uma caça desesperada à embarcação alemã. Três encouraçados e 14 cruzadores foram enviados ao sul do Atlântico, em grupos separados, em busca do Graf Spee. Por três meses, o Graf Spee despistou os perseguidores, mas no dia 13 de dezembro, a 500 km da cidade uruguaia de Punta del Este, na boca do Rio da Prata, foi encurralado. Por volta das 6 horas, três cruzadores o cercaram. O navio foi alvejado 19 vezes e Langsdorff sofreu uma concussão craniana, ao ser atingido por estilhaços. Apesar dos danos, o capitão conseguiu conduzi-lo para dentro do Rio da Prata - e rumou para Montevidéu.

O Uruguai era uma nação neutra, mas seu governo não simpatizava com o Terceiro Reich. Quando o navio ancorou, milhares de pessoas acorreram às avenidas à beira-rio para avistá-lo - o Graf Spee ainda tinha munição suficiente para bombardear Montevidéu. Apesar do receio, o governo do Uruguai anunciou que concederia apenas 72 horas para que os alemães consertassem os danos no casco e enterrassem os 37 mortos na batalha contra os ingleses. Depois disso, o barco teria de zarpar. Circulavam boatos de que a Inglaterra enviara uma grande frota para vigiar a foz do Prata. Para Langsdorff, o estuário havia se transformado em um beco sem saída.

Langsdorff, além de ferido, estava exausto. Havia indícios de que começava a se desiludir com Hitler: no funeral dos marinheiros, foi a única autoridade que não fez a saudação nazista. No dia 18 de dezembro, o navio zarpou pela última vez. A 7 km da costa, o capitão ordenou que a tripulação abandonasse a embarcação. Depois, instalou cargas explosivas. Faltavam 10 minutos para as 21 horas quando uma labareda gigantesca lançou uma coluna de fumaça negra para o céu. Mais três explosões se seguiram. Em Montevidéu, jornalistas começaram a tagarelar afoitos para suas respectivas estações de rádio, enquanto o Graf Spee, destroçado por seu próprio capitão, desaparecia sob as águas do Prata.




Foto: Wikimedia Commons

Após esse desfecho digno de uma ópera de Wagner, a tripulação alemã buscou refúgio em Buenos Aires - alguns voltaram à Europa para continuar a guerra. Dois dias após afundar o Graf Spee, Langsdorff vestiu o uniforme e deitou em sua cama, no City Hotel, em Buenos Aires. Enrolou-se em uma bandeira - não a suástica nazista, mas a cruz negra, insígnia da antiga Frota de Alto-Mar da Alemanha Imperial. Então, deu um tiro na cabeça com sua pistola Mauser 7.65.

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Livro


The Battle of the River Plate: the Hunt for the German Pocket Battleship Graf Spee, Dudley Pope, McBooks Press, 2005
Fonte:guiadoestudante.abril.com.br

sábado, 16 de novembro de 2013

Brigas entre famílias no Brasil Colônia duram até hoje

Brigas entre famílias no Brasil Colônia duram até hoje

Disputas por poder e terras, rivalidades cultivadas de geração em geração. Brigas mortais entre famílias marcaram o Brasil Colônia, mas algumas pendengas sobrevivem até hoje

Moacir Assunção | 08/03/2012
Ilustrações Elly Walton
 Largo da Matriz, São Paulo de Piratininga. Naquela manhã de fins de agosto de 1640, gritos e impropérios trocados entre dois homens poderosos, Pedro Taques e Fernando de Camargo, o Tigre, tomam o centro da vila, transformada rapidamente em um campo de batalha. Parentes, agregados e índios - escravos das famílias Pires, à qual Taques era ligado, e Camargo - juntam-se à contenda e enfrentam-se armados de espadas, lanças e adagas. A pancadaria invade becos e largos vizinhos num torvelinho de sangue. "De repente era Romeu e Julieta, Ato I, Cena I", afirma Roberto Pompeu de Toledo em A Capital da Solidão - Uma História de São Paulo das Origens a 1900.

Há vários mortos e feridos, mas os brigões originais escapam ilesos. Ambos representam os mais importantes clãs da região, chefes políticos e militares, donos de enormes fazendas de trigo na serra da Cantareira. A rivalidade na disputa pelo comando da Câmara era a razão primeira do conflito. Um ano depois, distraído, conversando com um amigo ao lado da mesma igreja, Taques foi morto pelo Tigre com um golpe de adaga nas costas.

A contenda entre os Pires e os Camargos se arrastaria por duas décadas. E é só a primeira de sucessivas lutas sangrentas entre famílias na história do Brasil. Principalmente no período colonial, por causa da distância da metrópole portuguesa e da influência limitada de seus representantes, em muitos casos cabia aos "sobrenomes" aplicar alguma forma de justiça. Segundo o sociólogo Luiz da Costa Pinto, autor de Lutas de Famílias no Brasil, a coroa tinha sérias dificuldades para impor sua vontade no vasto território brasileiro. Especialmente no sertão, a vingança privada se sobrepunha com sobras à atuação da administração colonial, concentrada nas capitais e cidades litorâneas.

Havia uma hipertrofia de clãs ligados por laços de sangue. Os mais poderosos montavam verdadeiros exércitos particulares de escravos negros e índios, muito bem equipados e armados, para fazer valer seus interesses uns sobre os outros.
 Lavando a honra

Perto de 1650, outro episódio levou a rixa entre os Pires e os Camargos ao ápice. (Dizem que o ódio dos últimos era tanto que nas suas casas os adereços de louça usados sob as xícaras de café foram abolidos). No início das festas de entrudo (o avô do Carnaval), o jovem Alberto Pires brincava com sua mulher, Leonor de Camargo Cabral, quando, sem querer, matou-a com uma pancada na testa. Para encobrir o crime, convidou o cunhado, Antônio Pedroso de Barros, bandeirante casado com sua irmã, para visitá-lo e partilhar a diversão. Quando apontou na entrada da fazenda, Antônio foi morto numa tocaia, a disparos de bacamarte, e seu corpo arrastado para o lugar onde estava o de Leonor. Alberto, então, chamou os familiares e mostrou os dois cadáveres, dizendo que os flagrou em adultério e matou para limpar a honra. Os Pires até aplaudiram o feito. O assassino era filho de Inês Monteiro de Alvarenga, a Matrona, e Leonor, sobrinha do Tigre. Os Camargos, irredutíveis e dispostos a vingar a morta, sitiaram a fazenda de Inês em Juqueri, aliados aos Barros. Queriam sangrar Alberto "ou pelos fios do ferro das espadas ou pelas bocas das espingardas", no relato do cronista do século 18 Pedro Taques de Almeida Pais Leme, descendente do homônimo citado alguns parágrafos antes.

A viúva Matrona apareceu na porta empunhando um enorme crucifixo de ferro e pediu, em lágrimas, que seu filho fosse poupado. Os membros do cerco acabaram aquiescendo e somente prenderam Alberto para que o Tribunal da Relação, em Salvador, o julgasse. Acompanhado por alguns inimigos, o assassino foi levado a Santos, de onde partiria de barco para a Bahia. Nesse ínterim, sua mãe, a cavalo, juntamente com a milícia particular, se preparava para, quem sabe, resgatá-lo em Parati, onde a barcaça pararia antes de seguir viagem. Ao ter notícia da chegada da mulher, os Camargos enforcaram o assassino e o jogaram ao mar.

A partir daí, era a guerra. A capitania de São Paulo dividiu-se em duas tal o poder dos rivais. Só em 1660 o representante d’el Rei, o ouvidor Pedro de Mustre Portugal, conseguiu fazer os líderes Fernão Dias Pais, o caçador de esmeraldas, e José Ortiz de Camargo assinarem um acordo efetivo de paz. Nele estava expresso que os clãs, esgotados pela batalha, repartiriam igualmente os cargos na Câmara e o controle da vila. Um grupo de Camargos já havia se deslocado para a vizinha Santana de Parnaíba e para Taubaté na tentati
Nordeste
As guerras de famílias, marcas distintivas de sociedades rurais, são tão velhas quanto a Humanidade. No sul brasileiro, os estudiosos deram às disputas o nome de vendeta, numa referência aos episódios da tradição europeia, ocorridos principalmente na Itália, Córsega e Espanha. No Nordeste, chamam-se questão ou guerras de parentelas e se faziam em brigas por terras, aguadas (cursos de água), poder político ou em razão de desfeitas de um líder a outro. "Nessas regiões, o Estado não estava presente. São áreas distantes, de difícil acesso. O poder estatal (colonial, imperial ou republicano) só aparece em momentos de crise. O poder central e suas instituições são vistos como algo externo àquelas comunidades", afirma o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).

No século 18, entre muitas ocorrências, estranharam-se Montes e Feitosas, do sertão dos Inhamuns, no Ceará. O líder dos primeiros era o capitão-mor Geraldo de Monte Silva, de Penedo (AL), que arrebanhou, a troco de presentes, um grande número de tribos a seu serviço. Entre os adversários, o pernambucano Lourenço Alves Feitosa dava as ordens. Ligados por laços de casamento, os clãs logo se desentenderam numa disputa de terras e "por razões de negócio de honra de família", escreveu o sociólogo Costa Pinto. Francisco Feitosa firmou aliança, então, com os índios jucás. Os índios inhamuns, por sua vez, integravam a vasta clientela dos Montes e, ao lado deles, lutaram com grande valentia.

A disputa perdurou por quase todo o século. De tão renhida, mudou até o nome de acidentes geográficos da região. Um atentado contra o ouvidor José Mendes Machado, que deu a vitória final na Justiça aos Feitosas, fez com que o lugar do ocorrido ficasse conhecido como Emboscada - até hoje. Não foi o único. Também há registros de paragens com os curiosos nomes de Riacho de Sangue, Riacho do Juiz (onde foi atacado pelos Montes outro magistrado tido como parcial aos Feitosas) e o sítio das Tropas, entre outros. Em uma das batalhas mais violentas, na fazenda das Cabaças, no Piauí, nove integrantes da família Monte foram mortos de uma só vez.
Pernambuco é, talvez, o estado onde mais houve lutas de famílias. E a mais famosa só terminou recentemente, em 1981, e opôs os Alencares aos Sampaios e Saraivas, em Exu, na fronteira entre o Ceará e o Piauí. Iniciada em 1949, quando José Aires de Alencar, o Zito, matou Romão Sampaio Filho, o coronel Romãozinho, depois de uma discussão banal, a contenda entre os ricos grupos levou a 33 mortes de ambos os lados. Houve vítimas no Recife e no Rio de Janeiro, numa demonstração de que a rixa não tinha fronteiras. A pedido do rei do baião Luiz Gonzaga, parente distante dos Alencares, o então vice-presidente da República, Aureliano Chaves, acionou o governador, Marco Maciel, que mandou desarmar os representantes de cada lado uma semana depois do apelo.

Em Recife, ainda sem saber de nada, Gonzagão foi desaconselhado por um amigo a viajar para Exu: "Não vai não, que os caras lá tão querendo te capar". As tropas estaduais haviam acabado de invadir as fazendas para recolher armas. O sanfoneiro deplorou a guerra na música Rio Brígida. Antes da intervenção estadual, um acordo entre as famílias, patrocinado pelo arcebispo primaz do Brasil, dom Avelar Brandão Vilela, havia suspendido as hostilidades só por dois meses. Outra tentativa, feita pelo Exército, também tinha fracassado. Em 1990, o prefeito José Peixoto de Alencar foi o primeiro a terminar o mandato na cidade sem registro de mortes.

Cerca de um século antes, desde 1894 até 1923, enfrentaram-se os Pereiras e os Carvalhos na terra natal de Lampião, Serra Talhada. Os primeiros descendiam de Andrelino Pereira, o barão de Pajeú, enquanto os demais eram prósperos comerciantes e fazendeiros. "Em geral, as lutas terminam pela exaustão econômica de um dos contendores ou por mudança no zoneamento. Na guerra entre os Pereiras e os Carvalhos, por exemplo, os Pereiras acabaram se fixando no campo, enquanto os Carvalhos se tornaram mais urbanos e mercantis, passando a viver na cidade", diz o historiador Frederico Pernambucano de Mello, autor de Guerreiros do Sol, que trata do banditismo nordestino.
Desde criança
Entrevistado pelo pesquisador Leonardo Mota na Penitenciária de Fortaleza, um Pereira, preso acusado de matar um dos desafetos, resumiu assim a situação: "Só possuo uma vida e essa é livre. Sou homem de honra e acostumado a falar de cabeça erguida. Essa primeira humilhação que estou sofrendo não me enfraquece e não há governo que dê jeito na minha luta com os Carvalhos. Isso é uma questão de sangue! Só quando Deus acabar com o último Pereira é que Carvalho deixa de ter inimigo nesse mundo. O senhor quer saber de uma coisa? Lá no meu Pajeú, quando um menino da família Pereira começa a crescer, vai logo dizendo: tomara já ficar homem para dar cabo de um Carvalho. A mesma coisa dizem os meninos deles". E nem parentes em comum eram capazes de interromper esse ciclo vicioso. O que, aliás, se repetia nas contendas de muitas outras famílias.

Iniciada em 1913, a guerra entre os Novaes e os Ferraz, em Floresta do Navio, também levou a várias mortes. Em 2000, o assassinato do soldado da Polícia Militar Carlinhos Novaes (em represália à execução do prefeito Oscar Ferraz Filho) parece ter sido o último lance do conflito. Para Mello, o caso diverge um pouco dos anteriores porque é mais uma disputa política que de sangue. Até hoje, na Igreja do Rosário de Floresta, Ferraz se sentam à direita e Novaes à esquerda. Mas, como prova de pacificação, a atual prefeita chama-se Rosângela Maniçoba Novaes Ferraz. "Faço questão de dizer que sou Rorró Maniçoba. Essa briga entre as famílias é de um pequeno grupo. Não faço parte dessa rixa", afirma a primeira mulher a comandar a cidade, no sertão do rio São Francisco.



Também duelaram em Pernambuco Morais e Cabrais, em Garanhuns, e Honoratos e Barros, no sul do estado. Omenas e Calheiros lutaram em Alagoas, assim como os Fortes Nunes e os Maltas. No Ceará, além dos Montes e Feitosas, combateram Mourões contra Moquecas e os Geraldos e os Leites. Brilhantes e Limões e Viriatos e Morais brigaram no Rio Grande do Norte, Cavalcanti Aires e Nóbregas combateram na Paraíba e os Maias estranharam-se com os Suassunas no eixo CE, RN e PB. No Sudeste, em Patos de Minas (MG), há registros de embates sangrentos entre Barcelos e Quintinos.
Há uma relação das lutas entre famílias com a milenar Lei do Talião, o "olho por olho, dente por dente"? O historiador Frederico Mello explica: "A guerra entre clãs é mais primitiva ainda, até porque a desproporção entre a ofensa e a vingança é muito grande. Em pouquíssimas ocasiões, o dano causado ao inimigo não superou a perda inicial".
Porta de entrada para o cangaço

Refregas levaram ao banditismo

Alguns dos principais personagens da historiografia sertaneja estiveram, de uma forma ou outra, envolvidos em lutas de famílias. Virgulino Ferreira da Silva apoiou os Pereiras em sua luta contra os Carvalhos em Serra Talhada. A própria trajetória de Lampião no cangaço se iniciou após uma questão entre sua família, Ferreira, com os vizinhos Barros, mais conhecidos como Saturninos e aliados dos Carvalhos. Já os Ferreiras tinham parentesco com os Pereiras. Também o cangaceiro potiguar Jesuíno Brilhante se iniciou no banditismo após matar Honorato Limão. A vítima era líder de uma família rival, em guerra contra os Calados, clã do qual Jesuíno fazia parte. Antonio Silvino, antecessor de Lampião, cujo nome verdadeiro era Manuel Batista de Moraes, foi outro que estreou no cangaço por questões de parentela. Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antonio Conselheiro, antes de se tornar líder messiânico, esteve indiretamente envolvido na luta entre os Maciéis e os Araújos em sua Quixeramobim natal. Os Araújos eram uma família poderosa da região que, súbito, viu seu poder ser contestado pelos rivais, gente pobre, mas valente.

Um mundo de desavenças
Só na Albânia, milhares já morreram

O Gênesis, no Antigo Testamento, descreve a vingança radical de Simeão e Levi contra Sichem, filho de Menor, que deflorou Dinah, filha de Jacó. Os irmãos da moça trucidaram a família do infeliz. Confúcio, o sábio chinês, estabelece em suas prédicas: "Não vivas sob o mesmo céu com o assassino do teu pai; se o encontrares na feira ou na reunião, não percas tempo em voltar e buscar armas". A China foi um dos lugares onde mais prosperou a vingança privada. No Egito, diz Luiz de Aguiar Costa Pinto, havia um costume semelhante: "Não mates para que não te matem. O que matar será morto, e o que der ordem de morte morrerá também".Nas regiões rurais da Espanha, Portugal e Itália, as contendas familiares eram comuns. A guerra entre os Médicis e os Sforzas, no Renascimento, ficou famosa. Na Albânia, sobrevive até hoje o Kanun, um código de honra não escrito, que determina aos familiares de um homem assassinado "lavar a honra" com o sangue do inimigo ou de seus parentes, num ciclo sem fim. O fenômeno é descrito por Ismail Kadaré no livro Abril Despedaçado. O Kanun, que existe há mais de 500 anos, foi declarado ilegal durante o governo do ditador comunista Enver Hoxha. Mas, após a sua morte, em 1985, a prática voltou com força no país. Desde 1991, o Comitê Nacional de Reconciliação trabalha para acabar com as rixas familiares. A ONG calcula que 9,5 mil pessoas foram mortas, nas últimas décadas, com base no código.
(Fonte:guiadoestudante.abril.com.br )